Download Catequizar e instruir: o perfil dos pescadores de almas, segundo o

Document related concepts
no text concepts found
Transcript
Limite. ISSN: 1888-4067
nº 5, 2011, pp. 91-102
Catequizar e instruir: o perfil dos pescadores de almas,
segundo o Padre António Vieira
Nelson Veríssimo
Universidade da Madeira
[email protected]
Data de recepção do artigo: 16-06-2011
Data de aceitação do artigo: 20-06-2011
Resumo
O Padre António Vieira (1608-1697), além de famoso pregador, foi
missionário na Baía e no Maranhão, onde se empenhou na conversão e
defesa dos índios.
Por diversas vezes, sublinhou que todo o jesuíta deveria aprender a
língua da terra onde residia, a fim de melhor servir a missão de pescador
de almas. Ele próprio redigiu catecismos em diferentes línguas.
Nos seus sermões, cartas e outros textos, distinguem-se traços,
delineados com intensa experiência evangelizadora e profunda
erudição, da imagem ou perfil de um missionário ideal, empenhado na
catequese, instrução, auxílio e salvação.
Palavras-chave: António Vieira – Companhia de Jesus – Missionário –
Brasil
Abstract
Padre Antonio Vieira (1608-1697), besides being a famous preacher, he
was a missionary in Bahia and Maranhão where he was deeply
committed to natives’ conversion and protection.
On several occasions, he pointed out that every Jesuit should learn the
native languages in order to improve the mission of being a “fishermen
of souls”. He wrote catechisms in different languages.
Based on his intense evangelizing experience we can appreciate in his
sermons, letters and other works, with a profound erudition, the ideal
profile that a missionary must have when committed to catechesis,
apostolate, education, support and salvation.
Keywords: António Vieira – Society of Jesus – Missionary – Brazil
António Vieira, em carta de 21 de Julho de 1695, escreveu que
«esteve cinco anos em todas as aldeias da Baía, e nove anos na
NELSON VERÍSSIMO
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
gentilidade do Maranhão e Grão-Pará, onde em distância de
quatrocentas léguas levantou dezasseis igrejas, fazendo catecismos em
sete línguas diferentes; e, depois de reduzir os Índios à Fé e vassalagem
de el-rei de Portugal, então capitulou, com eles e com os Portugueses, o
modo com que uns haviam de servir e os outros lhes deviam de pagar
cada mês.» (1997: III, 686)
Como Visitador Geral da Província do Brasil, na Exortação
primeira em véspera do Espírito Santo, pregada em 1688, lembrou o
preceito inaciano, e da própria Regra da Companhia, de todos os
jesuítas deverem aprender a língua da terra onde residiam, enfatizando
todos, «porque todos haviam de ser pescadores de almas». (Vieira 1959:
V, 382)
Salientou ainda Vieira, no mesmo sermão, que o título de Doctor
gentium, que São Paulo atribuía a si próprio, «não se dá na Baía, nem
em Coimbra, nem em Salamanca, senão nas aldeias de palha, nos
desertos dos sertões, nos bosques das gentilidades.» (1959: V, 390). E
chamou, ao Grão-Pará e rio das Amazonas, «imensa universidade de
almas» (Ibid.), onde os noviços se aplicariam na ciência da conversão,
reputando de grande importância a experiência na Babel do rio das
Amazonas, onde havia mais de cento e cinquenta línguas (1959: V,
414).
Nos seus sermões, cartas e outros textos, distinguem-se traços,
delineados com intensa experiência evangelizadora e profunda
erudição, da imagem ou perfil de um missionário ideal, empenhado na
catequese, instrução, auxílio e salvação. Por vezes, mestre, pai, pastor
ou tutor, e, por outras, médico, enfermeiro, servo e escravo, a empresa
do pescador de almas deveria ser, na linha dos ensinamentos de São
Paulo: «Todo para todos, e para todos tudo.» (Vieira 1959: V, 388)
O protótipo do missionário, segundo Vieira, foi objecto de um
estudo de Maria Lucília Gonçalves Pires, publicado na revista Oceanos,
por ocasião do III Centenário da morte do Padre António Vieira (Pires
1997). Retomando o conceito de protótipo, de Max Scheler (2001), já
utilizado por Margarida Vieira Mendes (2003), Lucília Pires deu-nos bem
documentada visão do «conjunto estruturado de valores que constrói a
imagem ideal do missionário», na perspectiva do famoso jesuíta (1997:
29).
Vamos também tentar gizar o perfil do pescador de almas,
segundo Vieira, procurando, em síntese, esse «dever ser ideal» em
cartas, sermões, regulamentos, projectos de diplomas legislativos, defesa
92
Limite, nº 5, 91-102
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
NELSON VERÍSSIMO
perante o Tribunal do Santo Ofício, História do Futuro e na Clavis
prophetarum, não esquecendo nunca que o jesuíta se dedicou à
missionação dos índios do Maranhão entre 1653 e 1661, beneficiando,
pois, das vivências dessa realidade, como, por diversas vezes, sublinhou.
Além do protótipo, pretendemos saber se Vieira reconheceu um
modelo de missionário encarnado numa personagem histórica
(exemplar), o que Lucília Pires afirmou, no artigo citado acima, não crer
ser possível procurar nos textos do nosso jesuíta. Contudo em «Vieira
Pregador», aquela reputada investigadora reconheceu a existência do
modelo ideal do pregador:
Em muitos dos seus sermões Vieira desenhou o modelo ideal do
pregador e apontou figuras que personificam esse ideal. O protótipo do
pregador segundo Vieira encarna em pessoas como S. Paulo, S. João
Batista ou Santo António – homens que usaram a palavra para
converterem os homens para Deus. (Pires 1997a)
Invocando o fundador da Companhia de Jesus, Vieira lembrava,
em 1688, aos noviços e estudantes do Colégio da Baía que a sua
«vocação é para discorrer e fazer vida em qualquer parte do mundo,
onde se espera maior serviço de Deus, e ajuda das almas.» (1959: V,
381). Aludindo, depois, à sua própria experiência, salientou que deixara
«o mundo do mundo» para salvar a sua alma, e o «mundo da Religião»,
isto é, as retóricas, filosofias, teologias, cadeiras e graus das Letras, para
salvar muitas almas (1959: V, 391-392).
A conversão e salvação das almas exigiam o conhecimento da
doutrina cristã, mas também despojamento, renúncia e determinação,
como deixou claro no sermão da Exortação Primeira em véspera do
Espírito Santo (Vieira 1959: V, 377-395).
Acerca do despojamento de Vieira, seja-nos permitido apresentar
três exemplos que podem ilustrar aspectos da sua vida como
missionário. Convém, no entanto, ter em conta, como advertiu
Margarida Vieira Mendes, que o nosso jesuíta «escolheu ardentemente
colocar a sua vida e a sua obra bem perto de uma subida noção de
perfeição humana e de vontade de ser.» (Mendes 2003: 53)
Em primeiro lugar, atente-se no excerto de uma carta ao Padre
Francisco de Morais, de 6 de Maio de 1653, onde descreveu, com
júbilo, as dificuldades sentidas no Maranhão:
Se eu ouvira Suas inspirações, já não fora tão grande pecador; mas, se o
menos mal é parte do bem, alguma consolação posso ter hoje, que no
Limite, nº 5, 91-102
93
NELSON VERÍSSIMO
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
outro tempo me faltava. E, para que vós também a tenhais, sabei,
amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano grosseiro cá
da terra mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco;
trabalho de pela manhã até à noite; gasto parte dela em me
encomendar a Deus; não trato com mínima criatura; não saio fora
senão a remédio de alguma alma; choro meus pecados; faço que outros
chorem os seus; […]. (Vieira 1997: I, 295)
No mesmo sentido vai a Defesa do livro intitulado Quinto
Império…, entregue, no Tribunal da Inquisição de Coimbra, depois de
23 de Julho de 1666 e antes de 23 de Dezembro de 1667, quando Vieira
lembrou aos Inquisidores «o teor da sua vida e o seu zelo da disciplina
religiosa e do culto divino, da propagação da Fé e da salvação das
almas, da reformação dos costumes, da frequência dos sacramentos, da
promoção da piedade e devoção, assim entre os Portugueses como entre
os Índios e outros» (1952: 159):
Ou se era de homem que nem cresse nem amasse a Cristo, o cuidado e
a vigilância, e as viagens e indústria que tinha, para que nenhum gentio
ou catecúmeno morresse sem baptismo nem algum baptizado sem
confissão, indo muitas vezes quatro e seis léguas a pé, e muitas vezes
quinze e vinte, atravessando bosques e rios, sem ponte nem caminho,
caminhando de dia e de noute para confessar a um enfermo. […] E
será, finalmente, de homem que não cresse em Cristo nem amasse a
Cristo, a constância a que outros chamam pertinácia, com que tanto
instou e trabalhou para arrancar por todas as vias daquele Estado o
pecado universal, e como original dele, do cativeiro injusto dos Índios,
sem embargo de ter contra si todos, não só seculares, senão
eclesiásticos? (Vieira 1952: 160-161)
Na Defesa sublinhou também que a missionação se fazia à custa
da caridade e mortificação dos missionários:
[…] comendo farinha de pau, bebendo água e vestindo algodão tinto
na lama, tiravam de si e da boca o que tinham por mais bem
empregado no culto divino e no socorro dos pobres corpos das almas
que iam salvar, sendo o maior trabalho e dificuldade de toda a missão a
cobiça insaciável dos que, por cativar e vender os corpos, punham em
risco as almas; e para o fazerem mais livremente e sem estorvo,
chegaram a prender sacrilegamente e desterrar aos que por amor das
mesmas almas se tinham desterrado. (Vieira 1952: 168-169)
Finalmente, na Exortação primeira em véspera do Espírito Santo , o
então Visitador Geral da Província do Brasil, evocou os seus
94
Limite, nº 5, 91-102
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
NELSON VERÍSSIMO
companheiros missionários, relevando a sua renúncia a graus ou
carreiras:
Quem me dera poder agora chamar por seus nomes as almas de todos
aqueles que eu acompanhei, quando fui à missão do Maranhão, e nela
trabalharam e morreram gloriosamente! Eram dos melhores engenhos
das nossas universidades, humanistas, filósofos, teólogos, e quando se
viram naquela grande seara de almas, todos renunciaram
uniformemente todos os graus, que costuma e pode dar a Companhia
às Letras, e não quiseram outros estudos, senão aqueles somente, que
lhes serviam para catequizar um gentio na sua língua. (Vieira 1959: V,
392)
Acrescenta ainda que os missionários congratulavam-se com os
progressos e davam graças a Deus por lhes ter possibilitado passarem
dos estudos da Europa para aquela «escola do Céu, tão superior, tão
alta, tão útil, e tão descansada.» (1959: V, 393)
Por outro lado, a missionação exigia determinação e coragem.
Vieira deixou isso bem claro na Exortação doméstica em véspera da
Visitação, proferida na Capela interior do Noviciado, do Colégio da
Baía, em 1688:
O verdadeiro e valente missionário há-de lutar com Deus, e lutar com
os homens: com Deus, obrigando-o por meio da oração; e com os
homens, convencendo-os por meio da pregação… (1959: IX, 319)
Tantas vezes a acção dos missionários foi prejudicada por
acidentes, emboscadas, práticas antropofágicas, fome, sede e doenças.
Mas a essas adversidades juntaram-se a incompreensão e oposição de
autoridades e colonos, que não queriam admitir limitações à escravatura
dos indígenas. O seguinte excerto do Sermão da Sexagésima ilustra bem
estas situações:
Houve Missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do
grande Rio das Amazonas; houve Missionários comidos, porque a
outros comeram os bárbaros na Ilha dos Aroãs; houve Missionários
mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da
fome, e da doença: onde tal houve, que andando vinte e dois dias
perdido nas brenhas, matou somente a sede com o orvalho que lambia
das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant
humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda
se vejam pisados, e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me
queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores: só pela seara o digo, só
pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados si, mas
por amor de Vós mirrados; afogados si, mas por amor de Vós afogados;
Limite, nº 5, 91-102
95
NELSON VERÍSSIMO
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
comidos si, mas por amor de Vós comidos; pisados, e perseguidos si,
mas por amor de Vós perseguidos, e pisados. (Vieira 2008: I, 24-25)
Incumbia ao missionário «derrubar a gentilidade, e edificar a
cristandade», «arrancar a superstição e ignorância, e plantar a fé» (Vieira
1959: V, 387). Esta missão combinava-se, porém, com o destino glorioso
profetizado para Portugal, anunciado já no Sermão dos Bons Anos: «[…]
vencendo e sujeitando todas as partes do Mundo a um só império, para
todas em uma coroa as meterem gloriosamente debaixo dos pés do
sucessor de S. Pedro.» (Vieira 1959: I, 341)
Ou como, em interpretação profética, escreveu na História do
Futuro:
Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo abriu o
primeiro caminho pelo mar […] Os Portugueses, aqueles cavaleiros que
pisaram as ondas do mar, como os cavalos pisam o lodo da terra […]; e
as naus dos Portugueses, aquelas carroças que levavam pelo mar a Fé,
a salvação […]. (2005: 332)
Obrigado a regressar a Lisboa, depois de expulso do Maranhão,
Vieira, no início de 1662, relevou a importância espiritual e temporal da
actividade missionária no âmbito da política ultramarina:
Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade nem
cristandades nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem
abertos e livres estes dois caminhos […] um caminho para trazerem os
gentios à Fé, outro para os livrarem da tirania: um caminho para lhes
salvarem as almas, outro para lhes libertarem os corpos. (Vieira 1959:
II, 32)
Na História do Futuro, aludiu também à relação entre frutos
espirituais e temporários possibilitados pela missionação:
Porque, pelo fruto espiritual que vão fazer os missionários, vêm de lá os
frutos temporais com que Portugal se enriquece. E se vão faltando os
segundos frutos, é porque também vão faltando os primeiros, de que
eles nascem. (2005: 304)
Deveria, por isso, ser o missionário iluminado pelo Espírito Santo
e amar profundamente a Deus e aos seus irmãos:
Para converter almas, não bastam só palavras, são necessárias palavras
e luz. Se quando o pregador fala por fora, o Espírito Santo alumia por
dentro: se quando as nossas vozes vão aos ouvidos, os raios da sua luz
entram no coração, logo se converte o mundo. (Vieira 1959: V, 399)
96
Limite, nº 5, 91-102
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
NELSON VERÍSSIMO
Porque para ensinar homens infiéis e bárbaros, ainda que é muito
necessária a sabedoria, é muito mais necessário o amor. (Vieira 1959:
V, 400)
Vieira preocupava-se com as populações que não eram
evangelizadas, enquanto se formavam padres da Companhia ou tardava
o seu envio para as missões.
E será bom zelo e boa consolação para as mesmas almas, dizerem-lhes
os humanistas, que esperem dous anos; e os filósofos, que esperem três;
e os teólogos que esperem quatro; e todo este curso de estudos, que
esperem ou desesperem onze anos inteiros? Onze anos fazem
pontualmente quatro mil dias, não havendo dia algum em que muitos
daqueles miseráveis não morram sem fé, e sem baptismo. E quem há-de
dar conta a Deus de tantas almas? Onde estão as leis da caridade?
Onde estão as obrigações da necessidade extrema? Onde está aquele
fim, e aquela vocação de discorrer e correr a qualquer parte do mundo,
onde se espera maior fruto e remédio das mesmas almas? (1959: V,
393-394)
Em face desta apreensiva realidade, o pregador sublinhou o facto
de, superiormente, ter sido concedido «aos que não acabaram seus
estudos, que os possam ir acabar ao Maranhão, ainda com dispensação
quotidiana de lições e anual de tempo», para «ganhar instantes e evitar
dilações, em que se perdem muitas almas» (Vieira 1959: V, 389).
Em datas anteriores, encontramos, em diversas cartas, semelhante
receio pela falta de missionários. Sirva de exemplo a que escreveu ao
Padre Francisco Soares, reitor do Colégio de Évora, em 15 de Maio de
1653:
Ah! Meu padre, que se vai todo o mundo e se vão mundos inteiros ao
Inferno por não haver quem cative o caminho do Céu!
Não sei que fé é a nossa, nem que esperança a dos ociosos de tantas
províncias da Companhia, nem que conta hão-de dar a Deus de seu
instituto e profissão.
Enfim, V. Rev.ª nos acuda, e nos socorra esta missão com todos os que
V. Rev.ª julgar capazes dela […] Para todos haverá trabalho, e para
todos o bastante com que passar a vida. (Vieira 1997: III, 718)
O missionário necessitava de «muito cabedal de amor de
Deus», principalmente pela «qualidade das gentes» das missões do
Brasil e pela dificuldade das línguas (Vieira 1959: V, 404).
Limite, nº 5, 91-102
97
NELSON VERÍSSIMO
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
Várias vezes, referiu-se aos indígenas do Brasil em termos
negativos, para acentuar o trabalho árduo do evangelizador: «porque a
gente das terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais
avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo.» (1959:
V, 404)
Esta afirmação, contida no Sermão do Espírito Santo, pregado na
Igreja da Companhia de Jesus em S. Luís do Maranhão em 1657, é
fundamentada na experiência do orador, mas por ele vem a ser
rebuscada e artificiosamente sustentada no Evangelho de S. Marcos (16,
14-15), quando narra a aparição de Cristo Ressuscitado aos onze
apóstolos, ordenando o anúncio da Boa Nova pelo mundo inteiro,
depois de censurar a sua incredulidade e obstinação.
Do mesmo sermão é a muito conhecida alegoria do estatuário:
Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura,
informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel
na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e
depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisalhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avultalhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe
as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali
arruga, acolá recama: e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que
se pode pôr no altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à
graça divina. É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai
e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança),
aplicai o cinzel um dia e outro dia, dai uma martelada e outra
martelada, e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só
um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo. (1959: V, 424)
No entanto, a «qualidade das gentes» não deveria justificar
quaisquer faltas à obrigação, que cabia a todos, homens ou mulheres,
«cada um conforme seu estado», na promoção da fé e no ensino da
doutrina cristã. Vieira afirmava que, mesmo que alguns fossem ou
parecessem pedras, troncos ou brutos animais, «a indústria e a graça
tudo vence; e de brutos, e de troncos, e de pedras os fará homens»,
levantando aqui o confronto da graça com a natureza (1959: V, 423424).
A perseverança, recomendada ao missionário, não dizia somente
respeito à fase inicial da conversão dos gentios, mas também à sua vida
futura de acordo com os princípios da fé cristã: «… se os não assistis,
perde-se o trabalho» (1959: V, 409).
98
Limite, nº 5, 91-102
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
NELSON VERÍSSIMO
Tal é a fé dos Brasis: é fé que parece incredulidade; e é incredulidade
que parece fé: é fé, porque crêem sem dúvida, e confessam sem
repugnância tudo o que lhes ensinam; e parece incredulidade, porque
com a mesma facilidade com que aprenderam, desaprendem; e com a
mesma facilidade com que creram, descrêem. (Vieira 1959: V, 406407)
Exigia, por conseguinte, acompanhamento permanente dos
pregadores, porque havia «de estar sempre ensinando o que está
aprendido, e há-se de estar sempre plantando o que já está nascido, sob
pena de se perder o trabalho e mais o fruto.» (Vieira 1959: V, 407-408).
Ou numa imagem feliz: «É necessário nesta vinha, que esteja sempre a
cana da doutrina arrimada ao pé da cepa e atada à vide, para que se
logre o fruto e o trabalho.» (Ibid., 408)
Para o Padre António Vieira, a palavra constituía o instrumento
principal da pregação da fé (2008a: II, 431), devendo, por isso, o
missionário conhecer a língua dos gentios. Aliás, como lembrou na
Exortação primeira em véspera do Espírito Santo , a regra de Inácio de
Loyola ordenava a aprendizagem da língua dos naturais.
Por diversas vezes e em diferentes lugares, referiu-se à dificuldade
das línguas, a segunda circunstância que, no seu entender, pedia
«grande cabedal de amor de Deus» (1959: V, 411). Assim, podemos
constatar no Sermão do Espírito Santo, de 1657:
Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do
bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem
perceber as vogais, ou consoantes, de que se formavam, equivocandose a mesma letra com duas e três semelhantes, ou compondo-se (o que
é mais certo) com mistura de todas elas: umas tão delgadas e subtis,
outras tão duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras, e mais
afogadas na garganta, que pronunciadas na língua: outras tão curtas e
subidas, outras tão estendidas e multiplicadas, que não percebem os
ouvidos mais que a confusão, sendo certo em todo o rigor, que as tais
línguas não se ouvem, pois se não ouve delas mais que o sonido, e não
palavras desarticuladas e humanas, como diz o profeta.» (1959: V, 414415)
Igualmente, no Sermão da Epifania, proferido em Lisboa, na
Capela Real, em 1662, após a sua expulsão do Maranhão, Vieira
enfatizou as dificuldades na aprendizagem das línguas nativas:
É necessário tomar o bárbaro à parte, e estar e instar com ele muito só
por só, e muitas horas, e muitos dias: é necessário trabalhar com os
Limite, nº 5, 91-102
99
NELSON VERÍSSIMO
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
dedos, escrevendo, apontando e interpretando por acenos o que se não
pode alcançar das palavras: é necessário trabalhar com a língua,
dobrando-a, e torcendo-a, e dando-lhe mil voltas para que chegue a
pronunciar os acentos tão duros e tão estranhos: é necessário levantar
os olhos ao Céu, uma e muitas vezes com a oração, e outras quase com
desesperação, é necessário finalmente, gemer, e gemer com toda a
alma; gemer com o entendimento, porque em tanta escuridade não vê
saída; gemer com a memória, porque em tanta variedade não acha
firmeza; e gemer até com a vontade, por constante que seja, porque no
aperto de tantas dificuldades desfalece e quase desmaia. (1959: II, 2425)
Na Representação perante o Tribunal do Santo Ofício , de 1666,
mencionou também a «diversidade incompreensível das línguas»,
sublinhando que muitas não se podem entender, pronunciar ou ouvir,
«por serem guturais, e não desarticuladas, e mais semelhantes às das
aves e às das feras que às dos homens.» (2008a: II, 209-210)
O missionário jesuíta debatia-se com o obstáculo de «línguas tão
estranhas e bárbaras, como as vozes dos brutos» (Vieira 1959: IX, 324),
as quais deveria aprender: «aos que pregam a fé entre as gentilidades,
condena-os o amor de Deus, não só a que falem as suas línguas, senão a
que as aprendam.» (V, 416). Depois do oferecimento da vida, para o
Padre António Vieira constituía uma das maiores ofertas a Deus o
aplicar-se ao «martírio, ou ao dificultosíssimo estudo das línguas
bárbaras, que tão trabalhosamente se chegam a entender e falar.» ( Ibid.,
384)
Para Vieira, Cristo não somente havia dado o exemplo como
missionário, senão era o «mestre, e exemplar de todos os missionários
do mundo» (1959: IX, 317-318). O perfeito e consumado missionário
que, conforme profetizara Isaías (49, 1-5) começaria a sua missão desde
o ventre da mãe.
Apesar de acreditar que a «conversão do mundo e pregação
universal do Evangelho» haveria de ser «obra especial da omnipotência
e providência divina» (2008a: II, 432), o Padre António Vieira tinha em
muita consideração o exemplo de «varões de muito superior espírito e
verdadeiramente Apóstolos», como José de Anchieta (o «grande
Anchieta», como habitualmente o denominava nos sermões) ou S.
Francisco Xavier, que promoveram, em diferentes partes, a difusão da fé
cristã (Ibid., 425). Todavia, a Francisco Xavier consagrava a maior
admiração. Dedicou-lhe uma série de quinze sermões e, em muitos
outros, referiu exemplos edificantes da vida do apóstolo do Oriente, a
100
Limite, nº 5, 91-102
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
NELSON VERÍSSIMO
quem chamou de «luzeiro enviado do Ocidente» que «iluminou o sol
do Oriente que nascia nas trevas»:
Esse foi S. Francisco Xavier, que não só iluminou e abrasou, com os
raios da sua pregação, toda a Índia e toda a Ásia Maior, como
testemunham por toda a parte nessas terras os despojos sem conta
arrancados ao paganismo, pendurados, em homenagem a Cristo
vitorioso, nos templos e nos padrões por ele erigidos; mas também,
como está expresso na bula da sua canonização, foi ele o primeiro que
levou o Evangelho e a fé a sete nações de povos diversos, cujo nome é
conhecido, a saber: Japões, Paravás, Malaios, Acenos, Mindanaus, Jaios
e Malaqueses. (Vieira, 2000: 129)
Em nosso entender, o jesuíta viu Xavier como o missionário
exemplar, sendo bem significativos os encómios que lhe dirigiu no
capítulo final do Sermão décimo da sua canonização:
Muitos santos não converteram um homem à Fé; e Xavier de todas as
seitas converteu tantos, quantos elas em mil e quinhentos anos não
puderam perverter. Muitos santos, contentes com a salvação da sua
alma, não salvaram outra; e Xavier de inocentes e adultos, seguindo os
que menos dizem, salvou ou pôs em estado de salvação um milhão e
duzentos mil. Muitos santos guardando perpétuo silêncio, nem a sua
língua falaram; e Xavier pregando a inumeráveis nações bárbaras, a
todas falava na sua própria língua. (1959: XIII, 415)
Bibliografia
Mendes (2003): Margarida Vieira Mendes, A oratória barroca de Vieira,
2.ª ed., Lisboa, Caminho.
Pires (1997): Maria Lucília Gonçalves Pires, “O protótipo do Missionário
em textos de Vieira”, Oceanos (Lisboa), n. 30/31, pp. 25-32.
Pires (1997a): Maria Lucília Gonçalves Pires, “Vieira pregador”,
Millenium on line, n.º 8, http://www.ipv.pt/millenium/ect8_mluci.htm
Scheler (2001): Max Scheler, Ética: nuevo ensayo de fundamentación de
un personalismo ético, Madrid, Caparrós, 2001 (introducción y
edición de Juan Miguel Palacios; traducción de Hilario Rodríguez
Sanz).
Schurhammer (1992): Georg Schurhammer, Francisco Javier: su vida y
su tiempo, Navarra, Gobierno de Navarra, Compañia de Jesús,
Arzobispado de Pamplona, 4 tomos.
Limite, nº 5, 91-102
101
NELSON VERÍSSIMO
CATEQUIZAR E INSTRUIR: O PERFIL DOS PESCADORES DE ALMAS…
Vieira (1952): Padre António Vieira, P.e António Vieira: obras escolhidas:
vol. VI: obras várias (IV): Vieira perante a Inquisição , Lisboa, Livraria
Sá da Costa (pref. e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade).
Vieira (1959): Padre António Vieira, Obras completas do Padre António
Vieira: Sermões, Porto, Lello & Irmão, 15 tomos, 5 vols. (pref. e
revisto pelo Padre Gonçalo Alves).
Vieira (1997): Padre António Vieira, António Vieira: cartas, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 3 vols. (coord. e anot. de J.
Lúcio de Azevedo).
Vieira (2000): Padre António Vieira, Clavis Prophetarum = Chave dos
Profetas: Livro III, Lisboa, Biblioteca Nacional (ed. crítica de Arnaldo
do Espírito Santo).
Vieira (2005): Padre António Vieira, História do Futuro, Brasília,
Universidade de Brasília (org. por José Carlos Brandi Aleixo).
Vieira (2008): Padre António Vieira, Sermões: edição crítica: I, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda (dir. científica de Arnaldo do
Espírito Santo).
Vieira (2008a): Padre António Vieira, Representação perante o Tribunal
do Santo Ofício, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2 vols.
(ed. de Ana Paula Banza).
102
Limite, nº 5, 91-102